UM PARA O OUTRO por Eduardo Bologna
Diretor musical do Música em Família, músico e produtor
Quando os pensamentos de Um Para O Outro foram tomando forma e os textos e imagens começaram a se transformar em música, o termo inglês folk passou a ser naturalmente citado em praticamente todas as nossas conversas e atividades de criação… folk, folk music, folk art, música folclórica – existem inúmeras nomenclaturas e expressões para descrever o conceito artístico do qual nos apropriamos para criar a atmosfera musical deste CD Livro; mas, na minha visão, tudo se resume a um único e abrangente conceito: “Música que se pode carregar e entregar”.
Isso pode parecer bastante óbvio e redundante, numa primeira análise; mas é, justamente, sobre esse pilar que construo a minha própria definição de folk music. Uma música que gira em torno de sua mensagem, cuja forma e orquestração podem ser levadas a qualquer lugar, em qualquer condição. Uma música que pode ser feita por uma única voz, por um único instrumento acústico ou amplificada para milhares de pessoas em um festival ao ar livre e que permanecerá irretocável desde que a palavra se mantenha intacta como seu principal objetivo.
Se você procurar em um dicionário o significado de folk music, certamente direcionará sua pesquisa para a produção artística norte-americana dos anos 60; chegará a Bob Dylan, Simon & Garfunkel, ao canadense Leonard Cohen e outros tantos. E se continuar buscando, essa pesquisa o conduzirá a nomes menos conhecidos do grande público como Pete Seeger, Woody Guthrie e incontáveis autores anônimos e canções tradicionais norte americanas, inglesas, celtas… Ou – quem sabe? -, seu caminho será desviado para o blues rural dos mestres Son House e Big Bill Broonzy até suas raízes africanas… Ou até mesmo para os hinos e cânticos espirituais dos colonizadores de tantos mundos novos… Ou para a música folclórica de todos os lugares, distante de toda a iconoclastia que se instituiu através da produção fonográfica do Século XX… Enfim, se você for realmente fundo em sua pesquisa, chegará a muitos conceitos e nomenclaturas, mas se preferir pegar o meu atalho, poderá compartilhar do mesmo conceito ao qual cheguei durante esses anos de proximidade com o estilo: Música que se pode carregar e entregar, livremente.
Por isso mesmo, os instrumentos musicais de Um Para O Outro são em sua maioria acústicos. O som é orgânico e amadeirado, com arranjos criados para reforçar o texto, uma estrada sonora para as palavras, de forma simples e direta em busca do entendimento pleno da mensagem das canções.
O universo folk norte-americano e inglês fica evidente no repertório e orquestração do trabalho, principalmente através de uma grande variedade de instrumentos característicos como Violão de Aço, Dobro, Banjo, Kazoo e Washboard, no entanto, a escolha de outros elementos como Violoncelo, Clarinete, Ukulele, Piano Rhodes e Acordeon trazem o CD para uma atmosfera menos regional, livre de qualquer rótulo imediatamente ligado à folk music.
Tanto as harmonias quanto as melodias das canções buscam o caminho mais curto e direto, passeando por diversos estilos musicais ligados ao gênero; mas, certamente, ampliando o conceito para uma sonoridade mais eclética. Se observarmos os elementos do disco, faixa por faixa, encontraremos já na primeira canção, “Um para o Outro”, uma levada folk rock questionadora, próxima a Johhny Cash, interrompida por um momento onírico repleto de elementos celtas. Na lúdica faixa “Estrela”, as vozes entrelaçadas e sua harmonia bachiana servem de pano de fundo para a melodia simples e expressiva interpretada pelo Violoncelo. Em “Brincadeira”, um bluegrass mais tradicional, Clarinete, Dobro, Violão de Aço, Banjo, Bandolim, Contrabaixo Acústico e Washboard se revezam nos improvisos como em um verdadeiro pega a pega sonoro. “A Marcha” reproduz uma pequena Banda Marcial com sua orquestra de Kazoos no lugar dos metais em estilo Dixieland, em contrapartida a faixa “Seu Nome” traz um andamento relaxado e confortável, com uma combinação de Acordeon, Violão de Nylon, Violoncelo e Mellotron. Já em “Não Custa Nada”, o Violão de Aço em fingerstyle completa o Piano Rhodes a la Ray Charles – uma espécie de encontro entre Bob Dylan e a música espiritual norte americana -; até que, na faixa bônus “Por Perto”, o violoncelo encontre o caminho livre para criar a tradução melódica da interpretação de Paula Santisteban, conservando a palavra intacta; claramente, o maior objetivo de todo o trabalho.
Além das canções, todas as faixas são precedidas por textos e trilhas sonoras originais, criadas especialmente para introduzir o estilo musical e o conceito artístico que se apresentará em seguida. Essas trilhas, assim como as canções, podem desencadear inúmeras referências importantes e significativas em torno de folk music e dos conceitos artísticos de folk art. Em “Colcha de Retalhos”, por exemplo, podemos perceber como Clarinete, Dobro e Violão de Aço apresentam a atmosfera do trabalho; em “Noite de Verão”, podemos notar a influência de John Dowland, contextualizando o período renascentista do seu contemporâneo escritor William Shakespeare; em “Tarde de Outono”, o solo de Banjo remete à composição Dueling Banjos de Arthur Smith, popularizada na versão de Eric Weissberg e Steve Mandell no filme Deliverence (1972); em “Madrugada de Inverno”, podemos até ouvir uma breve citação de On Moonlight Bay (Percy Wenrich). Aproximamo-nos das raízes musicais do delta do Mississippi, retratando a superstição do sul dos EUA, presentes em trabalhos como E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? (O Brother, Where Art Thou?), um filme dos irmãos Cohen (2000). E por fim, “Tarde de Primavera” e “O Caminho” são composições violonísticas estruturadas sobre a técnica de fingerstyle em cordas de aço, um dos pilares da folk music tradicional. Vale ressaltar que estas mesmas trilhas sem a locução também estão presentes no CD; no que chamamos de versões instrumentais, podendo servir como fundo musical para as mais diversas atividades, de acordo com o objetivo e aplicação que o educador preferir.
De qualquer forma, os arranjos e interpretações deste álbum são apenas um ponto de partida. Acredito que tais canções podem ser executadas nas mais diversas formações e condições técnicas. Por isso mesmo, neste material de apoio aos educadores e professores de música, apresentamos as canções em partituras com melodias e acordes.
As partituras não têm o objetivo de servir como um songbook, nem mesmo uma transcrição exata das execuções musicais registradas no CD “Um para o Outro”, pois entendemos que um material como este seria muito complexo para o propósito. As melodias sofreram leves alterações em sua divisão para maior facilidade na leitura, mas seu conteúdo melódico foi rigidamente respeitado. O mesmo acontece com as cifras e os acordes facilitados que foram cuidadosamente adaptados para não perder sua função harmônica.
Por fim, durante os anos de 2010 e 2011, tive o imenso privilégio de acompanhar todos os processos que envolveram o CD Livro “Um para o Outro”, desde sua concepção artística, criação dos textos, construção da colcha em patchwork, projeto gráfico, até a parte de produção musical que me cabe mais diretamente. Pude apreciar o quanto a criação coletiva é enriquecedora e generosa. Espero, sinceramente, que meus colegas músicos, educadores e professores continuem este imenso processo criativo, colocando a sua identidade e personalidade na aplicação deste livro, “carregando e entregando a arte que fazemos todos juntos…”
Esta é a história de Um Para O Outro…