UM PARA O OUTRO por Paula Santisteban
Diretora artística do Música em Família, cantora e compositora
Após o lançamento do Receita de Felicidade, em 2008, toda a equipe do Música em Família iniciou uma pesquisa de campo para entender como nosso projeto acontecia dentro das escolas. Acompanhamos de perto os processos realizados pelas crianças com os educadores e com as famílias. Analisamos nosso material sob diferentes pontos de vista e concluímos que a fórmula que havíamos desenvolvido em nosso primeiro trabalho era muito interessante. Ao final daquele ano, recebemos inúmeros pedidos para que realizássemos um novo tema.
Em 2009 eu e o Edu recebemos a notícia de que seríamos pais, engravidei da nossa filha Estela! Essa experiência nos transformou imediatamente, começamos a observar tudo com outros olhos. Nossa percepção ficou mais apurada, nosso trabalho e as mensagens de nossas canções passaram a ter um novo sentido, com muito mais profundidade e responsabilidade.
Neste mesmo ano, Harlei Florentino, um amigo querido, músico e diretor de uma escola em São Paulo, me enviou um link do trailer do documentário Criança, a Alma do Negócio, da cineasta Estela Renner, apresentado pelo Instituto Alana. Assisti em uma tarde chuvosa, em minha sala silenciosa, na nossa editora no bairro do Belenzinho. Aqueles cinco minutos me tiraram do chão. Aquelas cenas definitivamente me pararam. Provavelmente, a minha gravidez fez com que a mensagem do filme tivesse um efeito ainda maior. Até aquela tarde, nunca havia refletido sobre o consumo na infância… fiquei inconformada, me sentindo alienada por desconhecer aqueles dados tão importantes. Não parava de me questionar e de pensar no assunto… como uma criança poderia ser um alvo escolhido pela publicidade? Não tinha a menor ideia de que o Brasil era o país campeão em quantidade de horas que as crianças passavam em frente a TV… mais de quatro horas por dia, isso há anos atrás… nunca havia reparado como os canais infantis massacravam as crianças, relacionando os personagens prediletos delas aos produtos anunciados. Os resultados apresentados no filme, que evidenciavam todo esse consumo e os objetivos da publicidade com o foco na criança, me deixaram alarmada. A cena que mais me inspirou a fazer algo foi a da entrevista da cineasta com um grupo de crianças que pareciam ter no máximo onze anos. As perguntas estavam ligadas ao que elas mais gostavam de fazer, se preferiam brincar ou comprar. Quase todas as crianças responderam que gostavam mais de comprar, e uma única, de brincar. Também foi perguntado onde elas mais gostavam de ir, se ao parque ou ao shopping. Todas responderam: Ao shopping! A cineasta mostrava frutas e legumes e as crianças não sabiam falar o nome, mas quando mostrava alimentos industrializados, como iogurtes e salgadinhos, elas falavam prontamente o nome de cada produto. A verdade é que fiquei triste demais com aquela realidade, com aquela covardia… e até mesmo por ainda não ter me dado conta de tudo aquilo que estava bem na minha frente…
Desliguei o computador, peguei um caderno velho e comecei a escrever incessantemente sobre o assunto… palavras, frases, atitudes, momentos que não custavam nada, que não pudessem ser comprados. Saí da minha sala, abri a porta do estúdio e entreguei meu caderno nas mãos do Edu, que ficou com ele por um tempo e voltou com a canção quase pronta, Não Custa Nada foi composta naquela mesma tarde.
A partir dessa canção, nasceu o Um para o Outro.
A próxima que compusemos foi Seu Nome. Estávamos bem no momento de escolher o nome de nossa filha e por isso mesmo conversávamos muito sobre este assunto. Constatamos que, assim como a impressão digital, o nome é algo único, que identifica, qualifica, conta uma história, vem de algum lugar… percebemos que é algo muito importante, o primeiro presente que uma pessoa recebe quando chega ao mundo. Como cada pessoa tem um nome, pensamos que a letra desta canção poderia ter um espaço que seria completado por quem a cantasse, com um ou vários nomes. Pensamos na frase: “Eu não me canso de chamar o seu nome…” e então quem a estivesse cantando poderia falar o nome de todas as pessoas de quem se lembrasse naquela hora, com toda a sua força. Chamar os nomes de quem se ama poderia alimentar bons sentimentos e principalmente trazer a sensação de acolhimento, além de conectar as pessoas envolvidas. Se as telas desconectam e distraem, nós ficamos imaginando uma espécie de antídoto… pessoas cantando juntas, celebrando o amor, conectando-se com o que elas têm de mais forte, mais puro e essencial… olhando para elas mesmas. É como se aqueles sons pudessem parar o tempo e acordar a todos de um sono profundo… não haveria mais nada, nenhuma marca, nenhuma celebridade, nenhum ídolo mundial que pudesse ser maior do que aquele encontro, do que aquelas pessoas.
Seguimos compondo canções, e eu, escrevendo poemas. Assim como em outros trabalhos comecei a agregar mais gente, além de mim e do Edu. Sou muito coletiva, gosto de dividir e misturar energias. Para este projeto trouxemos uma artista que admiramos muito, a cantora e compositora Estela Cassilatti, que também se dedicava a fazer arte em tecido, pacthwork. O Edu gravou o disco dela e eu assisti a um show em que ela própria havia costurado todo o cenário. Achei tão bonito e repleto de significado… ela aceitou o convite para costurar os retalhos de uma colcha que seria o cenário de um livro em tecido.
A Selma Bologna ajudou na concepção do livro, trazendo conceitos ligados à história da arte e principalmente sobre o quilt. Buscamos tecidos importados em tons de verde, cobre, azul marinho, vinho e bege. Como em todos os nossos projetos, de repente tudo começou a fazer sentido. Trazer retalhos que iriam ser descartados para se transformarem em arte, trouxe muito significado para um projeto que falaria sobre consumo. Costurar uma colcha de retalhos era o cenário perfeito para entrelaçar histórias. Tecidos, linhas, agulhas, bordados seriam o pano de fundo para as ilustrações de Hernani Rocha Alves. Eu e ele nos inspiramos nas colchas, bordados e pinturas que encontramos no Folk Art Museum, NY. Eram ideias que tinham muito a ver com o disco em si e também com o estilo musical escolhido, o Folk. Na sua origem a palavra folk está ligada à folclore, uma cultura que vem das pessoas, de um povo, de um lugar e não através do consumo, costumes que são passados de geração para geração, sem custo, sem nenhum objetivo de atingir o mercado. Além disso a música folk é orgânica e simples, tem em seu eixo a mensagem, muito mais do que a forma com que é apresentada, ou até mesmo o seu arranjo.
As etapas do processo foram acontecendo em sintonia… o Hernani desenhava, escolhíamos os tecidos, a Estela costurava e eu e o Edu compúnhamos as canções. A primeira cena que surgiu foi justamente a capa do livro, com todos os símbolos que seriam desmembrados nas próximas páginas. A primeira ilustração já continha uma casa simples de tijolos com sua janela aberta, colchas de retalhos no varal, flores, uma árvore com um balanço de dois lugares, um caminho, um portão, um muro, pássaros voando e um gato preto. Depois dessa ilustração, começamos a rabiscar as próximas páginas… mas uma boa surpresa aconteceu no meio do processo de construção do material. Nasceu nossa filha Estela, no final da tarde do dia 4 de janeiro de 2010, em meio a uma tempestade de verão. Depois de dois meses em casa voltei a me dedicar ao livro e, enquanto ela mamava eu escrevia os poemas.
O primeiro poema foi Colcha de Retalhos, trazendo essa ideia de costurar emoções, histórias, lembranças e também a construção de um trabalho coletivo. Um para o Outro, a canção de mesmo título do livro, trazia questões essenciais e empáticas: “O que eu sou pra você? O que você é pra mim? E o que nós somos juntos?”. O livro foi pensado em uma atmosfera de campo, bucólica, em que aparecem discretamente as quatro estações do ano: Noite de Verão, Manhã de Outono, Madrugada de Inverno e Tarde de Primavera. O poema Noite de Verão, foi inspirado em Shakespeare… a ideia de trazer algo inusitado, como acabar a luz elétrica, poderia ser uma maneira de desconectar as famílias das telas e de tudo que os distraem para viverem algo verdadeiro, juntos. A janela surgiu como o símbolo dessa estação, como um portal para o mundo dos sonhos, da imaginação, uma porta para infância que está na lembrança dos adultos e presente na vida das crianças. Estrela é uma canção que já existia há alguns anos e falava sobre sonhos de infância. O poema Manhã de Outono trouxe o brincar como a maior expressão da criança. Na canção Brincadeira, buscamos a criança do adulto para participar e interagir.
Madrugada de Inverno foi o poema mais divertido de escrever, voltar a ser criança e lembrar dos meus medos infantis me fizeram sentir verdadeiramente um frio na espinha. A canção A Marcha, trouxe essa “ode” à coragem e também sugestões simples de como enfrentar os medos. Tarde de Primavera comparava a diversidade das flores e dos jardins com as pessoas. Seu Nome era a canção do momento mais forte do livro, que trazia a ideia central do “Ser” em relação ao “Ter”. O poema O Caminho falava sobre a liberdade de construir um caminho próprio, e também sobre como mensurar o tempo. E finalmente, na última canção do livro, voltamos para a primeira… como se estivéssemos fechando um ciclo, Não Custa Nada.
Este disco foi gravado com muitos instrumentos de cordas característicos do estilo folk, todos tocados pelo Edu. Os arranjos foram todos idealizados por ele, que também dirigiu a gravação dos outros músicos. É um disco que tem muito do Edu, pois ele estava completamente à vontade com esse estilo musical. Eu gravei as vozes do disco em tempo recorde, em uma tarde e uma noite…inteirinho, sem parar… canções e poemas.
Em 2011 foi o ano de lançamento de Um para o Outro com um grande espetáculo para educadores, em São Paulo. Além disso, no mesmo ano, foi filmado um clipe da canção Não Custa Nada que nos rendeu cerca de 1 milhão de visualizações na internet, levando a canção para todo o Brasil. Um para o Outro é um dos nossos projetos mais realizados pelas escolas e vivenciados pelas famílias. Eu, o Edu, e toda a nossa equipe acompanhamos seus desdobramentos com muita emoção. Vimos colchas de retalhos com histórias das famílias, sábados de brincadeiras entre pais e filhos, conversas sobre medo e coragem, quadros com sonhos de infância dos avós, crianças e pais cantando os nomes uns dos outros, construção de brinquedos com material reciclável, rodas de conversa sobre o consumismo infantil, a canção Não Custa Nada interpretada em libras e de tantas outras formas. Não imaginávamos como este projeto poderia ser tão transformador e que chegaríamos tão longe e para tantas pessoas.
Eu, como autora, sonho que os educadores que venham a receber o livro Um para o Outro em mãos vivam esta experiência por inteiro. Espero que consigam se desapegar de tudo que possa distraí-los. Meu desejo é que procurem a infância dentro de si, a criança, os sonhos, as brincadeiras, as risadas, o choro… a vontade de correr, de mudar de ideia, de rever amigos. Que consigam trocar vivências, histórias e lembranças…
Um para o Outro.